cobiçaria a noite coada dos infortúnios a erupção
o espaço de um diagrama
a arder
dos interstícios
eu erguia as mãos geladas contra as águas
contra os túmulos a nívea flor que exala a sede no ar profuso.
mariagomes
out2007
III
Ò corruptos do mundo! aqui nas lousas
Assentai-vos também às santas horas
Em que as vaidades das paixões se esquece.
Em que fala a verdade!
Porque o pó dos que foram já não mente,
Nem adulam espectros de orgulhos,
Nem as lavras ressurgem do seu leito
A beijar-vos as mãos grandes do mundo!
Grandes na corrupção! que a chaga horrenda
De crimes e impiedades andais cobrindo
Com as dobras do manto vergonhoso
De estólida vaidade…
Caíram-vos os véus! e nus ante Ele,
E a primeira vez nus ante vós mesmos,
Olhando-vos, de horror o olhar fecharíeis
E pediríeis a Deus remédio cura.
Vós que esqueçais o céu, e pisai a terra
Não como pátria onde o dever se cumpra,
Mas como escrava que saciar vos deve
De não sei que vil gozo…
Olhando o céu – talvez a vez primeira –
Lembraríeis que há um voz uma alma eterna,
- Uma alma! – não uma hóstia que se imole
Nas aras do egoísmo e da impiedade.
E então, olhando o manto que vos cobre,
Veríeis que mais crime nos delata
Cada palmo de púrpura sangrenta
Que a túnica de César:
E então, em cada prega, em cada fio,
Que do pranto de irmãos… talvez de sangue
Ensopada trazeis, encontraríeis
Um mundo acusador, grandes do mundo!
Mas não, pod’rosos! não, grandes e fortes!
Vós, os Reis! os senhores! um só momento
Corar e arrepender-vos, como o louco
Que inda em Deus tem crença?!
Oh! não! que o vosso Deus é o vosso orgulho;
Vossa justiça e fé, o próprio interesse,
E tendes um sorriso de ironia
Em vez de alma e por céu um monte de oiro.
[…]
Antero de Quental
in Poesia completa
publicações D. Quixote.
cruzarei os espelhos que marulham
ó ave do amor
que a tua pureza sai pelas veias grávidas da pátria
e do milho
com uma doce canção azul
na lezíria
pela água cruzarei a orla dos cardumes
pelo lume volvido onde o luar coze o grão.
mariagomes
out, 2007
quando eu voltar, direi poente
e pássaro...
só uma purpúrea voz se ouvirá
acima da concavidade de um outono.
levarei a maresia em seiva
e a palavra,
amor.
mariagomes
6 de out.07
[...]
Somente na Humanidade, há criaturas humanas que não são criaturas humanas. Quantas vezes olhamos para um ser que tem dois pés, duas mãos, a espinha vertical, que cobre o corpo como um fato, que segura nos dentes um charuto, e dizemos : - eis ali um homem. Todavia, aproximamo-nos dele, ouvimos-lhe duas palavras, e…basta! Lá se foi a ilusão. Não era um homem afinal. Um outro bicho? Também não. Apenas um monstro, um aborto, um produto horrível da civilização moderna: a mentira de carne e osso! E a mentira é a mãe da antipatia. A faculdade que o homem tem de ser mentiroso, isto é antipático, é o que o destaca de outros seres; não é a Razão, como pretendem os filósofos bem-humorados: é a Mentira.
Tolstoi, por exemplo está mais perto da pomba e da árvore do que o homem vulgar…
E é na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc…
A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita.
A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipresente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensanguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakunine, etc, etc…
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os mujiques da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que é só a gente sincera, inculta, e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens mujiques? A enxada será irmã da pena? A fome de pão parecer-se-á com a fome de luz?...
TEIXEIRA DE PASCOAES
(1) A Águia, I série, nº 4 15-1-1911, pag 11 e 12.