segunda-feira, janeiro 17, 2005

Adolfo Correia da Rocha


Miguel Torga N. 12.08.1907 F. 17.01.1995



"eu sou quem sou. Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raizes em rochas duras, rígidas, Miguel Torga é um nome ibérico, característico da nossa península"...


..../....


Livro de Horas


Aqui, diante de mim,

eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!


Miguel Torga

«O Outro Livro de Job».
Coimbra, Ed. Autor, 1936



sábado, janeiro 15, 2005

nas pombas de granito




descobri o tecido da cidade nas pombas de granito
Vi o grão iluminado de um voo
colher o musgo húmido da memória
Guardo o coração da melodia insepulta
em nevoeiro Em deus No que não creio.

mariagomes
15jan.2005




André Kertész

quinta-feira, janeiro 13, 2005




(...)
"Um verso bom não permite ser lido em voz baixa, ou em silêncio. Se pudermos fazê-lo, não é um verso válido: o verso exige ser pronunciado. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto.
Há duas frases que o confirmam. Uma é a de Homero ou a dos Gregos que denominamos por Homero, que diz na Odisseia: " os deuses tecem desventuras aos homens para que as gerações vindouras tenham alguma coisa que cantar". A outra, muito posterior, é de Mallarmé e repete o que disse Homero menos belamente: " tout aboutit en un livre" ( " tudo vai dar a um livro") Aqui temos as duas diferenças; os Gregos falam de gerações que cantam, Mallarmé fala de um objecto, de uma coisa entre as coisas, um livro. Mas a ideia é a mesma, a ideia de que nós somos feitos para a arte, somos feitos para a memória, somos feitos para a poesia ou possivelmente somos feitos para o esquecimento. Mas há algo que resta e esse algo é a história ou a poesia, que não são essencialmente diferentes." (...)

Jorge Luis Borges
in Sete Noites
obras completas volume III
editorial teorema

quarta-feira, janeiro 12, 2005

de lábios abertos



Com o sol das areias/ em cada folha,/
na coroa o sopro/ ainda húmido das estrelas.
eugénio de andrade



fui feliz como as palmeiras! tive alegria,
a cal, a chuva, o sono de uma pátria presente.
uma palavra, de lábios abertos,
ofereceu-me um poema:
pronunciei o verão de cada sílaba
em pedras cheias.


mariagomes
12.jan.2005

terça-feira, janeiro 11, 2005





(...)
Quem desconfia, lendo um poema, que a vida sangra, incomoda,
que o mundo não passa do peso acumulado do que imaginamos ser?


Floriano Martins

em " o diabo da carga"

(Fortaleza, 1957) poeta, editor, ensaísta e tradutor




domingo, janeiro 09, 2005

por ouvir



por ouvir ficaram os plátanos
aquele movimento de música nas árvores
depois tempestades d' oiro
- os risos estendidos na areia branca -
e os teus braços que cediam inexplicáveis e graves.

mariagomes

8jan.2005


..../....


por ouvir ficaram vozes abertas,
aquela alegria de crianças soltas,
antes da onda aterradora
- os corpos estendidos aos pedaços na areia suja -
trouxeram o ruído estridente de um silencio planetário
que transcende a lágrima sincera ou a hipócrita esmola...

José Dias Egipto

10jan.2005




sexta-feira, janeiro 07, 2005

O Artista


Dublin 1854- Paris 1900



Uma noite, chegou à sua alma o desejo de moldar uma imagem d'O Prazer Que Nos Habita Um Só Momento. E lançou-se ao mundo para procurar bronze.
Mas todo o bronze da Terra tinha desaparecido; em parte nenhuma deste mundo existia metal desse que pudesse ser encontrado. A não ser o que cobria a imagem d'O Lamento Que Dura Para Sempre.
Na verdade, tinha ele mesmo, com as suas próprias mãos, criado e deposto esta imagem no túmulo da única coisa que alguma vez amara na vida. Na sepultura daquilo que antes de morrer mais amara, colocou ele esta imagem do seu criar, para que pudesse servir como um sinal do amor do homem que não morrerá nunca, e um símbolo do lamento do homem que durará para sempre. E em todo o mundo não havia outro bronze excepto o bronze desta imagem.
Ele pegou na imagem que tinha esculpido e colocou-a numa grande fornalha, entregando-a ao fogo.
E a partir do bronze da imagem d'O Lamento Que Dura Para Sempre criou uma imagem d'O Prazer Que Nos Habita Um Só Momento.


Oscar Wilde
"Poemas em Prosa"
trad. Possidónio Cachapa
Cavalo de Ferro Editores

não me perguntem


Physalia physalis



não me perguntem o que vi Para isso Oboés cantam
o azul que anula as anémonas
Há um frio veloz
Eu celebrei aquele inverno turvo
onde os sentidos caíam em solidão erguida.

Não me perguntem o que vi É cega a sede dos crepúsculos
É cedo no céu da minha vida
Nele As minhas mãos sugam apenas as rugas límpidas.

mariagomes
7jan.2005

quinta-feira, janeiro 06, 2005

o pirão das lavadeiras





esta noite sonhei que comia, como antigamente,
em bolas, o pirão das lavadeiras...
lambuzava as mãos no molho da lata assente no fogareiro.
meu corpo de menina aquecia sentado numa pedra de luz
vinda do sol que secava peixe para a banda-sul das pescarias.

sonhei com esses dias, de gozar, na estrada estreita sem palmeiras,
ladeada por morros e mar. o mar que me batia!
(lembras-te, pai, do medo que eu tinha do mar?)

e sonhei também com os olhos abertos das cubatas
que sem pestanejar, me deixavam ver o escuro de pupilas.
de pupilas que não liam mas sabiam, e arregalavam-se aos
desenhos das nuvens e futuras trovoadas...

no meu sonho voltei a ser menina, comi o pirão das lavadeiras
e revi a insónia nos olhos das cubatas!

mariagomes
janeiro.2003

quarta-feira, janeiro 05, 2005

declaração


amo a lua imóvel
o circular de pássaros geométricos
quase a florir
nas tuas mãos cientes;
coisas que as manhãs não colhem.

mariagomes
jan.2005

terça-feira, janeiro 04, 2005

no amor e no medo


Anne BRIGMAN



ouve. as árvores acendem a luz dos remos
no amor e no medo do mundo.
do mundo velho onde as únicas raízes nos despem os braços.
todos os recados traçam silêncios. inflamam-se aragens a fundo.
não temos mais do que estas margens para cerzir as cinzas volúveis.
não pedimos mais do que os breves espaços
que se abrem miraculosamente entre a alegria e as lágrimas.

mariagomes
4jan.2005

domingo, janeiro 02, 2005

as palavras


Krista Elrick




sei que as palavras têm plumas
Pesam-me os poemas que não escrevi
Os lençóis alvos A outra luz a ombros fechados
Sei que as palavras são aves no passado.

mariagomes
2jan.2005, 15 h.

sábado, janeiro 01, 2005

sem morada



esta água que me rasga a pele
mergulha a sombra a faca
sangra o nome de um rosto
sem morada
este tecer constante
abrange a forma de dizer
que a minha mãe revolta
é uma lágrima sagrada.

mariagomes
1.jan.2005



Patrick Demarchelier



terça-feira, dezembro 28, 2004

que venham rosas




que venham rosas descer pela chaminé
e outros sinais avancem em direcção ao sonho.
que o mar vagueie terno pela terra,
sem cadáveres,
pernoite nas palavras,
saliente em hélice o hálito do amor.
e uma lua cresça no teu corpo
na serenidade das coisas que te acordam
como uma flor
na verdade que outros sois inventam.

mariagomes
28.dez.2004

segunda-feira, dezembro 27, 2004

o que diz o poeta...


(foto de Eduardo Simões)



A poesia
é uma família
dispersa
de náufragos
bracejando
no tempo
e no espaço.

Augusto de Campos

in Verso Reverso Controverso, 1978.
Ed. Perspectiva.


sábado, dezembro 25, 2004

quando eu nasci

g


" Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia
De chorar, me vinham de outros olhos."
Dante Milano


quando eu nasci havia uma praia de fogo
e de palha

os olhos verdes da minha mãe vigiavam o mar
por uma lágrima

solitariamente os homens abriam o sol ardia a verdade
de um fulgor infinito

quando eu nasci existia um grito
igualmente as estrelas compunham a cor.

mariagomes
dez.2004


“(...) os poetas (...), esses briguentos seres desequilibrados, que falsamente se intitulam apóstolos, mas, em dupla, roem a carne do terceiro. Os poetas, que cantam a pureza, mas que passam ao largo até das proximidades de um banho. Os poetas que esmolam de todos, até dos mendigos, só uma pequena chamada, só um pouco de carinho, só esmolam uma estatuazinha na esquina, a esmola da imortalidade dos mortais, esses cabeças-de-vento, invejosos, pálidos masturbadores, que venderiam sua alma por uma rima, por uma indicação, que expõem no mercado seus segredos mais íntimos, que tiram vantagem até da morte de pais, mães, filhos, e mais tarde, anos passados, ‘numa noite de inspiração’, quebram suas tumbas, abrem seus caixões, e com a lanterna de gatunos da vaidade pesquisam ‘emoções’, como ladrões de tumbas procuram dentes de ouro e jóias, depois confessam e se arrependem, esses necrófilos, esses feirantes. Desculpem, mas eu os odeio.”

Dezsö Kosztolányi, poeta e romancista húngaro ( 1885-1936)

sexta-feira, dezembro 24, 2004


Giordano Rizzardi, Cristo, 2003




"Estamos a sentir a tua falta, pá...
Isto tinha mais piada se tu abrisses um bocadinho o jogo.
Se tornasses inquestionável a tua existência.
És um Deus, que diabo, o que perdias tu com isso?
Desta vez não virias como homem, assim como te conhecemos,
guedelhudo, magricelas, o corpo enrolado nuns trapinhos, meio
Jim Morrison, meio Mahatma Gandhi. E não levarias tanto tempo como 33
anos a fazer efeito.
Terias que ser outra coisa. Uma água de chuva, uma água que caísse
de um céu imaculadamente azul, directamente da fonte divina.
Uma água que emendasse o que está mal. Fertilizasse o que está seco.
Uma água impossível de conceber. Vês?
Não beliscaríamos a tua natureza metafísica. Serias um espírito áqueo
e santo. A diferença é que poderíamos guardar-te em reservatórios e
distribuir-te através da rede pública.
E, assim, te teríamos numa sopa,
numa piscina, num copo, num chichi, numa lágrima.
Existirias em nós; não serias, como agora, uma alegoria algures no
coração e apenas alcançável pela virtude da fé.
És muito difícil, meu. E a tua malta aqui no terceiro planeta é um bocado
passada dos carretos.
Se fosses água, era entre mim e ti. Podia beber-te, podias dessedentar-me.
A verdade é que estamos a sentir a tua falta, pá. Não desse corpo que
abandonas-te numa cruz e que hoje faz de ti uma vedeta universal.
É um corpo que já não habitas, que importância pode ter?
Lembra-nos que somos mortais, e isso não é bom. Angustia-nos.
Mas se voltares, desta vez, fica por cá, evidentemente para todos.
Escolhe uma forma de ser. Eu falei-te da água. Mas podes regressar
como fogo e existirás num cigarro aceso; como vento e impregnarás o ar que
respiramos; como terra e serás a fonte da nossa sobrevivência.
Qualquer coisa que possamos sentir a todo o momento e nos torne mais
sábios, mais tolerantes,mais gregários.
Depois, teremos tempo para discutir a questão do bacalhau,
do peru, e das rabanadas.
Mas por mim e já que se fala nisso, pode perfeitamente continuar na noite
de 24 para 25 de Dezembro..."


Fernando Marques

domingo, dezembro 12, 2004



" O abandono. O vazio. A indiferença. Tudo está feito, o que tinhas a dizer já o disseste, os que dialogavam contigo para estarem de acordo ou te insultarem foram recolhendo ao silêncio definitivo. É a hora de te ires calando também, recolheres à aposentação de falares e de ouvires. Porque nenhuma palavra é já para ti e assim nenhuma é tua para os outros. Mas a tua língua move-se ainda, entre ela e a palavra, mesmo que seja só um nome, há uma ligação que nada pode cortar. Fala para dentro. Chama para dentro. E poderás circular entre os homens sem que te metam num manicómio."

Vergílio Ferreira
in " Escrever"

segunda-feira, novembro 29, 2004

além do muro


viras-te para a vida
e os cipestres atrevem-se além do muro.
na aurora fria cintila ainda a noite
aquele compromisso claro
de celebrar a necessidade de ser criança.

mariagomes
nov.2004

domingo, novembro 28, 2004

Daniel Faria ( 1971- 1999)




Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer da magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas - podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia - e essa é a verdade - cresce sempre
apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti.
E a flor que te estendo,mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.


Daniel Faria


Do livro "Dos Líquidos"
In Anos 90 e Agora, Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa
Edições Quasi, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2001

quinta-feira, novembro 25, 2004

o que diz o poeta...


albano martins




(...)
No seu novo livro Três Poemas de Amor seguidos de Livro Quarto, diz que «As palavras / só conhecem o limbo, a rigorosa / película da sede». As palavras são o rebordo ou o interior do ser?


São o rebordo, mas é o interior que elas buscam. A palavra é, em sentido etimológico, a parábola, termo de origem grega que, entre outras coisas, significa «semelhança», «comparação». Compara-se o que se conhece, o que se mostra ou «aparece» ao olhar. Visando embora a essência, é só a aparência (o rebordo) que as palavras cingem.

Quando na sua poesia, em mais de 50 anos de vida literária, fala, por exemplo, do «esplendor da carne», é em si um sentimento de totalidade?

É a afirmação, sem receios e tabus, da beleza do corpo, contra a moral hipócrita e repressiva que vê a nudez (ou a carne) como um pecado e a alma como uma entidade separada do corpo. Não há, porém, alma sem corpo, ou vice-versa. Eles são a demonstração da operação matemática estabelecida por Almada Negreiros em que 1+ 1 é igual a 1.

Nessa soma ontológica, nessa unidade, o poeta será um corpo inexplicável em que «São vivas todas as marés»? Estou a citar um poema seu...

Inexplicáveis são às vezes as marés, que tudo submergem ou subvertem, ao arrepio da vontade. Mas é melhor, então, aceitar o embalo da onda e naufragar, talvez, ou, como diz o meu amigo, pintor e poeta Cruzeiro Seixas, «morrer em pleno voo».


ALBANO MARTINS em entrevista a
MARIA AUGUSTA SILVA

sem luar


Gloria Baker Feinstein, b.1954




gradeias lágrimas neste céu
sem luar são passíveis as janelas
procuras a maneira finita da neve que cai nas estrelas
em nenhuma viagem foste tão longe
ao pormenor do sol subentendes a distância
e no entanto o mar parecendo pouco é teu
será sempre um ventre aberto onde pairam
gaivotas precoces onde perto gravita o vento.

mariagomes
nov.2004

quarta-feira, novembro 24, 2004

em grieg



habito o sentido de uma linha secreta
um corpo
esta marca que trago
em grieg tenho a alma os lábios
os olhos indo
como se uma primavera me fechasse
como se houvessem flores espelhadas
e dos caminhos o sol saísse.

mariagomes
nov.2004

domingo, novembro 21, 2004

apaguem todos os meus poemas...




apaguem todos os meus poemas de noite numa insónia funda
deixem que o branco vingue
como o silêncio dos planaltos longos onde me demorei.
estive somente a sacudir manhãs que dominam a dor.
agora que os caminhos estreitam
partem imagens absurdas cores cheiros
e mais qualquer coisa que criei em frente aos espelhos.

mariagomes
21.nov.2004

sábado, novembro 20, 2004

Um poeta, um amigo *



OUTONAL



Cai uma folha no poente destes dias
O que era nítido torna-se difuso
Babel renasce em cinzas de um deserto próprio
E o vento busca em vão uma harmonia

A solidão é em mim um oásis às avessas
Lutando em vão contra a miragem certa





*Amélia Pais




outono - José Malhoa (1855 - 1933)


domingo, novembro 14, 2004

dentro do peito



a lua nascida nas tuas mãos de longe
um saibro na linha visível, o cansaço,
quase perfeito o escândalo do sol
guardo tudo, meu amor, dentro do peito.
o sândalo de labaredas que engolem a eito
túneis de lágrimas alheias
guardo tudo, meu amor, dentro do peito.
o coração, a denúncia sonâmbula de sorrisos,
ruídos de substâncias órfãs, sem idade
um homem feito que corrompe a claridade
guardo tudo, meu amor, dentro do peito.
a ânsia do verbo mal trajado, de um poema longo
o leito alado da neblina nua, o sal mendigo da rua,
guardo tudo, meu amor, dentro do peito.
guardo cidades, torres a tiro, madrugadas,
um frio, o brilho de rosas em ruína,
um defeito, vazios, tudo que haja, meu amor,
eu guardo dentro do peito.

mariagomes
nov.2004

sexta-feira, novembro 12, 2004

o sangue que me nutre




vejo a foz das palavras famintas
no descanso dos teus dedos.
sigo o curso das escamas ardentes neste outono.
a pétala do teu sonho dilui o vento
no areal interno da luta.
vem. sobram asas sobre o mar desabrigado.
vem anjo sedutor proferir a oração o fim
a lâmpada acesa do meu ser.
obriga um rio a correr. obriga o grito
o sangue que me nutre a dizer.

mariagomes
12.nov.2004

quinta-feira, novembro 11, 2004

o que diz o poeta...





Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


Fernando Pessoa

quarta-feira, novembro 10, 2004


" Maternidade" José Sobral de Almada Negreiros (1893 - 1970)

terça-feira, novembro 09, 2004

a noite


a noite vingou num colo de palavras
é um canto perpétuo de luz
ó mãe as aves calçam o silêncio
e uma boneca impossível estende-lhes os braços.

mariagomes
nov.2004

sábado, novembro 06, 2004

o gesto do olhar




eu fico-me pelo soco da lembrança
de um deserto
deito-me na noite plana
na superfície de sonhos vivo
hei-de escrever um epitáfio em estanho
a boca em eco
o amor crivado de memória
hei-de escrever o horizonte
o gesto do olhar
a pedra
na história angular da nossa história.

mariagomes
6, nov.2004, 23h.35m

Conferência de Agostinho de Campos ( 1923)





(…)
“ quando eu era rapazinho, corria oralmente, entre os liceais meus camaradas, um bocado de “prosa riquíssima”, que eu decorei então, e nunca mais me esqueceu. Vou recitá-lo com a minha melhor entoação:

“ Acuminado pela sede de cascabulhar na caligem bruna dos tempos cadilhos edulcorados de cadoxos em estropiação acpacmásticas, exausto-me em pélagos de polimorfias eméticas, onde em vez de campanarem faces ebóreas de empubescimento acariante , enfrento apenas múmias egras dum calecedonismo de carpólilhos”


Nós, rapazitos, passávamos, uns aos outros a tradição deste saboroso petisco, que não sei de onde veio. Íamos aos nossos dicionários e encontrávamos lá todas as estupendas palavras de que ele se cozinhou. Mas não ficávamos por isso muito mais adiantados a respeito da sua beleza e significação.
Ora isto é mais sério do que parece, porque a idade a que cheguei já me permitiu ver que um ou outro literato e político tem feito muito boa carreira, a dizer ou escrever coisas que não se entendem muito melhor do que aquilo. E a mim parece-me que para a nossa política e toda a nossa vida social entrarem no equilíbrio, na ordem, no sentido das proporções e no próprio senso-comum, não deve ser indiferente que a literatura lhes dê sempre este mesmo e tão saudável exemplo.
Quem pensa claro, fala claro. Quem sente nobremente expõe a sua alma em termos simples. Quem é sincero execra a pompa no dizer, máscara de vaidade, pretensão e hipocrisia. Quem não pretende ou não precisa de meter os pés pelas mãos ou as próprias mãos nas algibeiras dos outros não transforma a palavra num feitiço misterioso e difícil, isca de ignorantes e ingénuos, inclinados a achar poderes sobrenaturais naquilo que não entendem.
E eis aqui uma grave dificuldade, uma contradição e quase um paradoxo: para sentir o valor da palavra simples e ao mesmo tempo artística, é necessário ser-se complicado, quer dizer: educado no gosto; culto de verdadeira beleza literária; fino de preferências e agrados. Na mesma loja de modas onde uma mulher distinta escolhe estofos e guarnições sóbrias de cores, pode entrar a seguir qualquer senhoreca dinheirosa, para se enfeitar como uma arara. E a literatura de um país provinciano ( inculto e pouco lido) arrisca-se a ser uma loja de modas a ser um maior sortido para catatuas, que para fidalgas.
... amemos e louvemos os nossos poetas e prosadores que falem claro, e claro se exprimem numa linguagem ordenada e cristalina. Muitos deles vivem ainda connosco, e são dos melhores que jamais tivemos. Melhores pelo talento, e melhores pelo ideal de servirem (…) a arte. Façamos por compreender a sciência da composição e amplitude das escalas que se oculta na harmonia sóbria das suas vozes. E ajudemo-los, e sigamo-los no seu empenho… estimulados pela nossa participação e pelo nosso aplauso, eles continuarão, e progredirão ainda, se é possível, tornando-se cada vez mais objectivos, mais humanos; e já que falam uma bela língua que o povo pode compreender, procurarão aproveitá-la para contar ao povo histórias que ele compreenda, como bons irmãos seus que se sabem mais sábios, mas não querem fazer da sua sciência título de estéril orgulho e pergaminho de aristocracia desdenhosa , sequestrada do ambiente mais largo.
Bastante egoísta se tem mostrado no decurso dos séculos a nossa literatura, sobretudo a poética, confinada quasi sempre no lirismo amoroso, que é uma forma de egoísmo, sensual ou lamuriento. Com uma prosa esotérica, difícil, complicada a acrescentar-se a uma poesia egocêntrica e indiferente ao mundo que a rodeia, cada vez mais os homens se afastariam do povo, da multidão das almas (...)
Pensem os nossos melhores escritores nesse povo, que afinal pouco perderá com não saber ler, se o escol literário lhe não fornecer nada que ele leia. (…)
"


Agostinho de Campos ( sócio correspondente da Academia das Sciências de Lisboa)

In “ as três prosas: A pobre, A rica, A nova rica.
Edição Livrarias AilLaud e Bertrand - 1923


os aromas de agosto


ia mais longe o sol quando as árvores eram profundas.
uma rosa cantava o esplendor da sombra aberta para o linho;
era largo o tempo das avenidas a fio.
agora, em que cidade te encontro?
que ruas abrem o teu sorriso ao rio?
que silêncios se quebram nos galhos, nas raízes, nas gargantas?
em quantas figuras se fixam os aromas de agosto,
em quantas cores, quantas...,? em tantas perguntas.

mariagomes
10ag2004

sexta-feira, novembro 05, 2004


Dupoux, Marithou - Les Masques

de uma resposta





"- tudo em nós interior e exteriormente, clama
por uma perpetuação - então a eternidade é uma resposta"
Alda Lara



pelo seio nu da mãe ao entardecer
pelo ser cumprido na palavra

pelo gosto da buganvília pela língua inesperada
pelo odor franzido do sol pela gaivota vaga
pela onda finda na pele pela lua exposta
pela esperança ainda de uma pergunta. de uma resposta.

mariagomes
5,nov.2004


quinta-feira, novembro 04, 2004

não sei




não sei onde deixei as lágrimas
se pelas estrelas dos homens dóceis tiritando
se pelos cavalos
bravos
frios
próximos
não sei se a noite cede a novembro
sobram-nos sóis
e nuvens roxas de nenúfares
gritam no sul coalhado.

mariagomes
4,nov.2004

o que diz o poeta...





(...)O homem é um mistério encarnado, opaco a maior parte das vezes aos olhos mais penetrantes. Por isso,ninguém conhece verdadeiramente ninguém. Mas os poetas mostram-se sempre como são. Não por serem mais sinceros, mas por imposição da própria poesia. Porque irrompe das profundezes ígneas do ser, quando se manifesta traz à tona a verdade ainda a fumegar. Em quantos versos sibilinos ficam registados os seus sentimentos e paixões? Em quantas imagens ocultas os traços disfarçados de rostos amados? Em quantos poemas eu vos disse já o que agora vos digo? (...)

Miguel Torga
Malaposta, 14 de Agosto de 1993


com palavras e plágios



flor minha flor aberta ao infinito frágil
flor flor duas vezes
cem vezes vieste flor do aroma
no fogo sem lábios
com palavras e plágios

flor volida na corola dos meus dedos
beijo-te em sílaba

mariagomes
set.2004

terça-feira, novembro 02, 2004

de brinquedos e arames




uma cidade erguia um campo precário de brinquedos
e arames vertidos pela paz.
a transparência em arco implodia da ilusão
vulcânica na música que cavalgava.
uma crina. uma cidade calada clara erguia o sonho humano.
um outro sonho à margem trazia o reino da ternura
onde sílabas pendiam de um piano.


mariagomes
2nov.2004

rente ao passado





quando a morte vier
direita aos meus lábios,
estreita o meu corpo
na febre a descer.

sairei de ti a andar, incerta,
no olhar que falou como se fala
à flor acabada no húmus da terra;
flor que viveu muitas vezes, interna,
em dias maleáveis como dedos
largados em mares cheios de lagos
e significados. mas só quando a morte
vier, e eu ficar rente ao passado.


mariagomes
in. " antologia Escritas 1"
janeiro2004

Manuel Bandeira





PREPARAÇÃO PARA A MORTE


A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é um milagre.
Tudo, menos a morte.
-Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.


Manuel Bandeira

domingo, outubro 31, 2004

feitio de oração*



" Só Deus" Francisco Metrass (1825 - 1861)




ó garrafada das ervas maceradas do breu das brenhas
se adonai de mim e do meu peito lacerado
ó senhora dos remédios

ó doce dona
ó chá
ó unguento
ó destilado
ó camomila
ó belladonna
ó pharmakon

respingai grossas
gotas de vossos venenos
ó doce dona
ó camomila
ó belladonna


serenai minhas irremediáveis pupilas dilatadas
ó senhora dos sem remédios
domai as minhas brutas ânsias acrobáticas
que suspensas piruetam pânicas nas janelas do caos

se desprendem dos trapézios
e tontas buscam o abraço fraterno e solidário dos espaços vácuos
ó garrafada das maceradas ervas do breu das brenhas
adonai-vos do peito lacerado e do lenho oco que ocupo.



*( wally salomão)

declamação de Maria Bethânia

in: cd _ " Preces Cânticos e Súplicas- à Senhora dos Jardins do Céu " na voz de Maria Bethânia



sábado, outubro 30, 2004


"Bailarina Descansando", Peter Max


um ocaso




anda pela areia um ocaso de cerejas
enquanto beijas frontes nítidas.
passo a passo regulo num tempo de ponteiros gastos
um tempo de veredas líquidas.
uma espécie de consolação uma espécie de mão em verso.
contudo sabes que o amanhã abrindo
consumirá a madrugada. não. o teu corpo não.
o teu corpo renascerá secreto de cinzas
como a musa que encantou flores dormindo.

mariagomes
30 out.2004

levíssima onda





tinhas a contemplação das coisas admiráveis.
lares de luares embebidos em lagares
vinho de longitudinal esperança.

e a lembrança era força motora
nos lábios esquecidos.

tinhas o sonho saído com vagar legítimo
um entrar de quem vem
e vai voltar numa levíssima onda.



mariagomes
coimbra.14 dez.2003

o que diz o poeta...






..., trago uma citação de Santo Agostinho que, a meu ver, vem bem a calhar. Disse ele: "O que é o tempo? Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei". Sinto o mesmo em relação à poesia.



Jorge Luís Borges
in "O Ofício do Verso"



sexta-feira, outubro 29, 2004

ao sossego tenso



ao sossego tenso de palavras de poeira cíclica
à ternura conseguida ao mar
à mãe exacta ao chão supremo da raiz a este clamor
intenso a essa voz que desdiz obedeço

ao vazio impune ao branco vivo do lume
à incerteza gritante que gira
a um gume de flancos trépidos a medo
à nuvem à noite a uma insólita alegria obedeço.

mariagomes
out.2004

"La Nave de los Locos", António Santos



Enigma







Nascemos de uma pergunta
cada um dos nossos actos
é uma pergunta,
nossos anos são um bosque de perguntas,
tu és uma pergunta e eu sou outra,
Deus é uma mão que desenha, incansável,
universos em formas de perguntas.

Octávio Paz



in " Figuras e Figurações"
apres. e trad. de José Bento
Assírio & Alvim

quarta-feira, outubro 27, 2004

E(ra) o tempo...

( a meu filho)



A cidade adormeceu na encosta da consciência
dos homens de duplo olhar - angélico satânico.
Irreconhecível, corre o rio à margem de azuis;
as tuas lágrimas perfumam lírios!...

Como gritos sinto coisas aflorarem à memória:
- o copo, a chávena, o gosto infantil do leite bebido pelo pires...
o branco dos lençóis que se estendia até o sol corar o horizonte.
Nos canteiros, as videiras viviam em acidez adunca
as lavadeiras elevavam cânticos à sombra dos mamoeiros.

Era o tempo em que persistiam buganvílias a janelas fechadas
e os patos faziam voos rasantes ao superficial suicídio das acácias
num parecer de sangue manchando o céu aberto.
Seria um prenúncio ou a conjugação de cores que impressionava?
Sei que hoje, meu filho,
as árvores baleadas são acariciadas pelo tempo
que ostenta cicatrizes sem vitórias.


2002, Julho, coimbra.
mariagomes


segunda-feira, outubro 25, 2004

em silêncio. um a um.




os homens estão tristes. não falam de cartas. não escrevem amor.
sucedem-se em silêncio. um a um. perderam as palavras.
vão pela rua tacteando rosas escuras com o cheiro de rosas na boca.
a língua jaz incolor oca nos homens que estão tristes.
a cada segundo escurecem planícies. o mundo é da noite.
e as estrelas tremem nas mãos dos homens que tristes modelam
a mão da luz. da pouca luz que ainda resiste.

mariagomes
set.2004

sexta-feira, outubro 22, 2004






"(...)De pé no tabuado do andaime, com a cabeça violentamente inclinada para trás, ou então deitado, escorrendo-lhe as tintas pela cara, Miguel Ângelo pintava; só perturbava o silêncio sagrado da capela o leve som do aprendiz preparando as tintas ou o gemer de tábuas sob os passos quando o estucador vinha lançar o preparo; nenhum dos ruídos de Roma penetrava ali dentro, tudo era calmo, mais calmo ainda na penumbra dos andaimes. Para Miguel Ângelo era como se estivesse muito longe da terra, como se a terra mesmo ainda não existisse e já na imaginação de Deus fosse surgindo o primeiro homem, depois a primeira mulher, depois toda a multidão de profetas e sibilas que um dia haviam de pregar ao mundo, já prevertido, a palavra divina; (...) "

Agostinho da Silva
in " Biografias II" ... "vida de Miguel Ângelo."


quarta-feira, outubro 20, 2004

a côdea


ao antónio porchia*


às vezes vejo na palavra a côdea da paz que procuro
Sinto viva a imensidão do murmúrio
Mas Hoje Nenhuma rosa se me oferece infinita
Nenhuma estrela sobrevive igual à tua.


mariagomes
out.2004


*N. 1886, Calábria- F.1968, Buenos Aires

"In/Visible Cosmos", by Susannah Hays

Um poeta, um amigo*




Como pomba liberta das mãos



como pomba liberta das mãos,
o poema voa na direcção do espaço;
libertou-se do poeta para o olhar
do mundo inteiro e, sem pudor,
vai contradizer quem o escreveu;
e no futuro dirão que o poeta disse
mas é o poema que o diz e mais ninguém;
e quem souber o que pensava o poeta
esquecê-lo-á - só a poesia importa,
só ela vive para sempre, no poema.
nenhum poeta é imortal, nem livre.
só o poema não desce ao cárcere.
só à poesia é dado regressar do inferno,
e visitá-lo incólume e troçar dele,
e despedir-se com um sorriso amável,
de volta ao seu próprio paraíso.


Gonçalo Bruno de Sousa

domingo, outubro 17, 2004


"Day's End" by Mark Eshbaugh

o meu segredo



se eu te dissesse que as flores bebem na boca do orvalho
a contemplação justa dos jardins
se eu te dissesse que é solto o barro
no tão profundo amor que tem o imaginário
se eu te dissesse que para além o sol busca a solidão de um poeta
e aqui regressa em carne tenra a corola da palavra
a recém-nascida intima alegria desse rosto
se eu te dissesse que há sal no azul
e o céu brota do sangue como se mar houvesse
se eu te dissesse tudo se o silêncio vivesse
se a morte viesse mais cedo meu irmão
para sempre viveria o meu segredo.


mariagomes
out.2004








terça-feira, outubro 12, 2004

numa lua


na exactidão das marés
Nos navios que fogem no teu nome
Iço a ferida da memória numa lua transparente
O fogo que não queima
Quando ausente
vem a flor do monte silvar a melodia.

mariagomes
out.2004

sábado, outubro 09, 2004

(de)lírio


minha doce onda azul Atravessas a placidez da praia
como uma gaivota triste A esconder o eco no sol das entranhas
Neste círculo que tanto subsiste.
Ó cal nocturna dos meus sonhos de olhos fechados
tens de verdade O (de)lírio
No campo a palavra submersa A gota do exílio.

mariagomes
out.2004

Malangatana Ngwenya


Óleo s/ tela. 100 x 81 cm. 1986/88



"Uma dor pode ser o nascer de uma alegria"

Malangatana


quinta-feira, outubro 07, 2004

o sono calmo



que fique gravado na parede _ o silêncio
e o sono calmo dos jardins erga a sombra do teu corpo.
que a boca diga dos amantes como a luz que vê
que solucem de ternura os gestos,
a paz com asas de condor.
haja na noite a aurora para que rios possam transbordar.
e que a partir de agora, simplesmente,
se entregue a palavra ao mar.

mariagomes
out,2004

quarta-feira, outubro 06, 2004

para a tua vida





"quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor sincera e desordenada"
Alda Lara



é pequena a minha morte para a tua vida. para a dor sincera
e desordenada que se passeia insone.
morro várias vezes para oeste. o vento aconhega-se na boca.
em confissões e artérias este berço este sangue
esta chuva trôpega pelo rosto.
deslizes, terramotos, hemoptises no feixe das flores.
há barreiras de facas a babarem-se no mar onde não agem os peixes.
é pequena a minha morte para a tua vida. para a tua dor.

mariagomes
out.2004


a saudade


a saudade é fria, meu amor. é uma viagem ao contrário,
como a viagem daquele dia que estremecia o pensamento.
a saudade, meu amor, é mandar um beijo em voz alta,
e ver um rosto perdido na respiração.
no cais, no carril, entre a cidade, no bilhete do metro
com o lápis da memória escrevê-la-ei, para que se apague.

mariagomes
jul.2004 ( revisto out.2004)

o que diz o poeta...


Moçambique



"Todo o poeta, o autêntico, deve-se assumir, sem meneios nem tiques, como cidadão do mundo. Não é equidistância, mas distanciamento inteligente com muitos mais defeitos do que coisas positivas. O poeta - e todo o artista - é um homem. Sempre imperfeito! Vou ler-te esta passagem de um poema de T.S. Eliot: Sobe. / A cama é franca; a escova de dentes na parede pende,/ Põe teus sapatos junto à porta, dorme, para a vida te talhar / O último talho da navalha..."

(...)Para mim, não me interessa o que o escritor, o artista é ou são: interessa-me a sua arte e como ela desafia os poderes, para que o homem sobreviva; para que o homem não se suicide, ele próprio, matando milhares e milhões. E, depois, há as mil máscaras. É um Carnaval de há milhares de anos. Todo o poder corrompe, dizia Confúcio. Todo o Poder chafurda na insensibilidade, no crime, na ignorância, no horror, no sangue quente de suas vítimas. (...)



Heliodoro Baptista em entrevista a MaderaZinco
http://www.maderazinco.tropical.co.mz/entrevista/heliodoro.htm


"Now I See" photo by Frank Grisdale, Canadian, b.1954

domingo, outubro 03, 2004

ao som de violinos



devo prosseguir de olhos abraçados à pátria
que o amanhecer fizer
imune cercar o sol das geadas com brilho
consultar oráculos
e sem custo erguer as casas a cidade
as ruas que regressam da limpidez
da pedra leve
em pedacinhos de outono

e as árvores a subir sempre a subir
ao som de violinos.

mariagomes
3out.2004


árvores em ferida


quando caem folhas, eu chamo por ti, mãe;
morrem pássaros nas palavras que falamos.
pelas janelas,
os ventos suicidas rebentam as paredes, os anos.
daqui a milhões de nada,
a extrema unção está próxima da vida.
quando caem folhas, mãe, as árvores ficam feridas.

mariagomes
set.2004

Vergílio Ferreira [1916-1996]


Vergílio Ferreira



"Um corpo e o que em obra superior ele produz. Como é fascinante pensá-lo!
Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo de sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de enlouquecer."


Vergílio Ferreira in Pensar

sexta-feira, outubro 01, 2004


foto por Steve McCurry

uma letra



preciso de te dizer
que me perdi pelos templos
olhando as aves que voam sem direcção.

preciso de te dizer
que um rio limpo corre onde há o muro
porque um menino lê uma letra enorme no futuro.

mariagomes
out.2004

dúbios

I

eu sei. já fizemos o amor.
a tarde deitou-se sobre o corpo da cegueira.
vieram, depois, os olhos duplos do silêncio.
nada mais resta
que esta cadeira sonhada de nascentes dúbios.

II

hoje, responderam as estrelas;
uma criança, ausente, revelou uma palavra.
e a noite surgiu e caminhou para uma ideia.
declinou o verbo das coisas.
os fragmentos. a erosão. a cadeira.


III

eu sei. o amanhã está, incrivelmente,vivo.
vê como eu falo! sem sair
falo com o coração para fora. com o teu coração.
há poentes difíceis por dentro.
que as verdades inventam, a partir.


mariagomes
set.2004
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Acerca de mim

A minha foto
Podes entrar ; tenho as mãos para dizer o disperso canto das águas. Os meus olhos, alagados pelo grito das árvores, são lúcidos ao início do sol. Com o amor das coisas, rejubilo e lanço os braços a um rodopio doce e futuro, a uma tempestade humana. Tudo o que eu espero é sentir o elo da criação que se move, entre mim e ti, e a claridade. ____________mariagomes
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